Reforma administrativa permite que presidente da República faça farra na administração pública
No início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro quis extinguir conselhos da administração pública, formados por representantes do governo e da sociedade civil. Ele também falou em extinguir a Agência Nacional de Cinema (Ancine) se não pudesse usar “filtro” nas produções. Os anseios de Bolsonaro esbarraram em previsões legais que não permitem a extinção de algo determinado por lei sem que uma nova legislação respalde isso. Dessa forma, são essenciais a fiscalização do Congresso Nacional e a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) como guardião da Constituição. Entretanto, instrumentos democráticos podem não ser mais empecilhos para Bolsonaro caso a reforma administrativa seja aprovada.
Pelo texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, que apresenta a reforma administrativa, o presidente da República tem seus poderes ampliados e pode, por meio de decreto, organizar o funcionamento da administração pública como bem quiser, desde que não ocorra aumento de despesa. Isso quer dizer que, com apenas uma canetada, o presidente poderá fundir, transformar ou extinguir ministérios; fundir ou extinguir autarquias e fundações, como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) e Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária); alterar e reorganizar atribuições de cargos vagos e ocupados; extinguir ou transformar cargos públicos efetivos, vagos ou comissionados, o que na prática permite que um cargo vago com salário de R$ 8 mil seja transformado em quatro vagas com salário de R$ 2 mil cada. Tudo isso sem passar pelo crivo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ou sequer ser questionado pelo Judiciário.
As prerrogativas são inéditas no âmbito do regime democrático e trazem caráter autoritário e concentrador ao Executivo, impedindo qualquer tipo de controle pelos demais Poderes. O perfil levou o advogado e consultor legislativo do Senado Federal Luis Alberto dos Santos, sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas, a chamar a reforma administrativa de PEC do Estado Novo do Bolsonaro, em alusão ao Estado Novo de Getúlio Vargas.
“A PEC coloca nas mãos do presidente da República, por meio de decreto, poderes semelhantes ao que Getúlio Vargas teve quando editou a Constituição de 1937, por meio de decreto-lei. O Congresso estava fechado, não funcionava, e o presidente da República tinha, naquela época, prerrogativa de dispor sobre todos os aspectos da administração pública por decreto-lei, e o Congresso sequer apreciava”, explica Santos.
Característica de governos autoritários, as decisões por decreto também vigoraram no Brasil no período da ditadura, quando mais uma vez foi atribuído poder total ao chefe do Executivo, que governava por meio de decretos-leis.
Para o professor de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Marcelo da Costa Pinto Neves, a reforma administrativa tem “caráter contrário à justiça social e traços de inconstitucionalidade”.
“Ao se dar tantos poderes para o presidente com base em normas infralegais, ao modificar facilmente a estrutura administrativa e as condições dos servidores públicos, estamos, de certa maneira, prejudicando o princípio da legalidade. Neste sentido, também caberia discutir se seria possível, nos parâmetros constitucionais brasileiros, uma reforma que enfraqueça tanto o princípio da legalidade administrativa e leve, portanto, a prejuízos ao princípio geral da legalidade, que é também uma proteção para o cidadão”, comenta o docente que, em 2019, foi vencedor do prêmio de pesquisa da Fundação Alexander von Humboldt, um dos maiores reconhecimentos da ciência alemã.
Ao centralizar o poder nas mãos do presidente da República e permitir que ele, através de decreto, extinga determinados cargos e carreiras, abre-se todas as oportunidades para que sejam cometidas uma série de retaliações contra setores do serviço público. “É o fim da reserva legal. Todos aqueles que o presidente não gostar, ele poderá fazer um decreto (para extinguir) e o Judiciário sequer poderá contestar, porque estará na Constituição”, diz o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Augusto de Queiroz. Ele alerta que a ampliação de poderes também será estendida a governadores e prefeitos, já que a aplicação da PEC atinge as três esferas públicas.
Com apoio explícito da chamada mídia tradicional, a reforma administrativa desorganiza a administração pública para permitir a criação de um serviço público subordinado e vinculado aos interesses do governo de plantão. “Essa PEC está jogando no lixo os princípios da Constituição de 1988, que permitiram tornar o serviço público mais amplo, mais diverso, mais profissionalizado, mais qualificado para atender às necessidades da sociedade”, avalia o consultor legislativo do Senado Luis Alberto dos Santos.
Por mais esdrúxula que seja, a PEC da reforma administrativa tem reais chances de ser aprovada no Congresso Nacional, onde foi criada inclusive uma frente parlamentar, composta por diversos representantes do empresariado, que se utiliza do falso discurso de moralidade e fim de privilégios para pressionar a aprovação da proposta. Na outra ponta, o povo, que da reforma administrativa só colherá os graves prejuízos.